Percurso criativo

Tessi Ferreira
3 min readSep 9, 2021

Logo que acordei pensei que seria bom escrever algo. Mas é importante (ou não) dizer que esse desejo não surgiu simplesmente porque eu queria escrever, mas porque amanheci com aquele sentimento, aquela sensação, que agora (e já há algum tempo) se transformou em um certo incômodo. E nem sempre escrever funciona como antídoto, mas hoje pensei que seria bom. Em seguida o segundo incômodo surge do fato de que eu não gostaria de escrever sobre aquilo, não de novo. Há muito está saturado. Então pensei em búfalos.

Búfalos podem pesar até 900 kg.

Búfalos podem medir até 3 metros de comprimento e 1,7 metros de altura.

Búfalo não é o mesmo que boi.

Búfalo não é o mesmo que bisão.

Búfalos possuem pelagem curta e negra.

Búfalos não possuem uma visão tão boa, mas o olfato e a audição são apurados.

Búfalos vivem em manadas, e essas podem chegar até 500 indivíduos.

Búfalos possuem chifres largos e curvados.

Búfalos atingem sua maturidade sexual e reprodutiva aos 4 anos.

Cada fêmea gesta apenas um filhote por vez.

Búfalos possuem hierarquias dentro das manadas e são geralmente silenciosos entre si.

A primeira vez que vi um búfalo foi há bastante tempo, mas consigo rememorar como se fosse ontem. Eu estava caminhando em uma das minhas ruas preferidas, exatamente porque está sempre despovoada. E ele apareceu. Como um mosquito que voa sorrateiro e de repente está na sua frente. Mas era um búfalo, não um mosquito. Era um animal realmente grande, muito grande. Robusto. Musculoso. Com patas bem aterradas no chão quente que eu e ele pisávamos. Seus chifres eram lustrosos e as pontas afiadas como lanças em uma curvatura perfeita apontando o caminho circular que sugere o encontro. Seu pelo era curto. Suas narinas estavam serenas. Ele espantava o ar com o rabo. Ele cheirava o ar com os olhos. Ele lambia o ar com as narinas.

Eu que ainda não havia conseguido me mover não estava com medo. Estava um pouco, mas estava fascinada também. No fundo, talvez eu acreditasse que o animal não era real. E por isso não precisava ter medo. Qual a probabilidade de um búfalo aparecer naquela rua? Qual a probabilidade de um delírio se materializar com tanta perfeição e riqueza de detalhes? Qual o próximo passo? Até quando ficaremos aqui? Serei abatida pela minha própria miragem? O par de olhos sereno e ameaçador, escuros como a mata densa, repousava sobre mim como uma âncora.

O bonito da natureza é que nada tem a intenção de nos torturar, nos machucar, nos magoar, nos provocar algum trauma. Se porventura isso acontecer, certamente não foi por crueldade. É maravilhoso como na natureza os acontecimentos são pura fatalidade, causalidade, necessidade, mas nunca perversidade. Mas também podem ser terríveis. Uma leoa que defende seus filhotes não hesita em cravar os dentes na jugular de seu inimigo. O búfalo com sua coroa majestosa caminhou emanando sua presença, balanceando a luz forte do dia com seu esplendor de noite. Deixei que ele repousasse seu corpo pesado sobre o meu, até que aquilo se afastasse completamente. Eu poderia morrer. Ou pelo peso do animal, ou por simplesmente não ter presas afiadas o suficiente para fazer sangrar esse desgostoso sentimento. Aquilo. Meu sonho é ver uma manada em ofegante movimento. Estar na manada. Equilibrar o corpo em cima da ponta do chifre. Respirar o ar quente dos búfalos.

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Tessi Ferreira

Autora do livro “Campo Minado”, editora Letramento. É melhor escrever do que engasgar.